quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

versos de pé de galo J Martins Garcia

Através de Teresa Martins Marques:

«VERSOS DE PÉ-DE-GALO»
José Martins Garcia

Estou farto de coisas sérias. quem me dera no tempo em que gostava de expelir umas quantas lérias. umas vezes rimadas. outras só sorridas. outras choradas mas sem lágrima visível.

quem me dera apoitado num café lisboeta que lá ao menos havia
montes de gente visível de quem um homem escarnecer. quem me dera até enclausurado na ilha verdadeira–boa piada!–que me coube em sorte porque aí a minha morte seria pretexto para o sino dobrar inequivocamente.

ah como é enorme a terra americana! vasta oeste e soberana! recheada de imigrantes cuja pele por dentro ou por fora vai branqueando conforme as posses de cada pele. ou então por efeito de sucessivos invernos gelados. como estou cansado! como estou velho! cinzento velho triste desgarrado gasto!

farto de coisas sérias. farto de coisas tristes. e no entanto triste e sério como um cadáver esquecido num matagal anónimo.se ao menos eu pudesse rir! rir mesmo. por fora e por dentro. morto ou vivo, rir mesmo torturado por lágrimas biológicas. efectivas. salgadas. quentes.

se ao menos eu pudesse chorar! de riso o que ainda seria o mais saudável. mas não. estou farto de coisas risíveis. estou farto dos outros. estou fartíssimo de mim.

só posso exclamar “merda”. não há um grão de originalidade nessa estúpida exclamação. pior. não me faz rir nem chorar. não aquenta nem arrefenta. é vocábulo simultaneamente erudito e popular.

isto está ficando insuportável. deveras. estou farto deveras de todas as veras. e redigo que estou farto a sério e do sério e farto do farto e farto da letra e farto da página. e estaria farto da felicidade se

soubesse o que é. e estaria farto de deus se alguma vez o tivesse encontrado. e do diabo idem que não me nenhuma confiança merece.

e a técnica cheira mal. os imigrantes são piolhos do caos. a arte é uma grandessíssima mistificação. a fraternidade rolha o nariz nos tugúrios. as mulheres oprimem. os homens querem é esfaquear-se. a
juventude é néscia. a maturidade um fruto bichoso. a velhice uma diarreia nevoenta. a morte a noite. o nascimento um arbítrio. a eternidade um logro.

ainda se eu tivesse uma mesa de pé-de-galo para conviver com alguém diferente dos asnos palrantes do meu tempo! bem vistas as coisas os espíritos comparecentes só me causariam engulhos se calhar maiores que os meus parentes presentes. Camões viria com seu único olho fosforescente puxar-me os pavilhões irrecuperáveis por eu não saber rimar nem oitavar nem sonetear nem
decassilabar. já nem falarei do Sá de Miranda o insuportável “na” de Camilo Pessanha. Pessanha por sua peça é um chato tão tipo que teve a lata de acabar um soneto com “pedacinhos de ossos”.

motivo de sobra para que lhe houvessem dignamente sovado os
dele. Antero o de Quental ou o do quintal da santidade ateia emudece no fio sanguíneo que da boca lhe escorre. jardim ilha e fábula incontrolada pelo morto verde asfixiado. na boca não lhe

resta sequer um escarro por sempre lhe ter faltado o vivido cuspo do humor. Fernando Pessoa
desdenhosamente mal refeito da última bebedeira civilizadamente engravatado no suicídio gentil dir-me-ia:

“Pra escrever sobre a chateza da existência bastava eu… que ao
menos tinha génio! Vai à merda, zé ninguém!” claro que proferida
por Pessoa a palavra “merda” torna-se genial. então “porra”.

e dos mortos que eu conheci vivos quem me daria dois dedos de
linguaragem? Vitorino Nemésio ? Jorge de Sena?

ah Nemésio Nemésio meu professor de literaturas enormes como o que me falta saber da vida e da morte! ilhéu de alma e olhos e palavra e angústia. cado vez mais deprimido já nem o meu sentir navega nem contigo! sou um novelo sem cor onde nada existe que desfiar. e Jorge de Sena inflexível só comentaria: “Sempre disse que é uma desgraça ter-se nascido em português”.


comenta VILCA MERIZIO:
Bom sentir novamente a paixão com que Martins Garcia falava do mundo de si mesmo, de seu estado de espírito e de sua crença na desumanidade. Sofreu muito; por isso foi muiito cedo. Uma vez ele se chateou quando duvidei da sua capacidade de amar. Depois vi que ele tinha razão: amava (e odiava) com todas as forças da sua alma. Gostei de reler o texto enviado. Obrigada,
Vilca
 

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